Para lá da guerra na Ucrânia… ou um provável preço devastador que a Europa pagará — “Uma Perspectiva Inesperada (para a Élite): Os EUA podem ser os maiores perdedores na guerra contra a Rússia”. Por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

9 min de leitura

Uma Perspectiva Inesperada (para a Élite): Os EUA podem ser os maiores perdedores na guerra contra a Rússia

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 20 de Fevereiro de 2023 (original aqui)

 

Foto: youtube

 

Para onde vai a Europa, na sequência das alegações do Nord Stream? É difícil ver uma Europa dominada pela Alemanha a afastar-se de Washington.

“A NATO nunca esteve tão forte; a Rússia é um pária global; e o mundo permanece inspirado pela bravura e resistência ucranianas; em suma, a Rússia perdeu, a Rússia perdeu estratégica, operacional e tacticamente – e estão a pagar um preço enorme no campo de batalha”.

Ele, (General Mark Milley, Chefe do Estado-Maior de Defesa dos Estados Unidos) não acredita numa única palavra do que disse. Sabemos que ele não acredita porque, há dois meses atrás, disse exactamente o contrário – até ter sido castigado pela Casa Branca por se ter afastado da mensagem de Joe Biden. Agora ele está de volta, a jogar na “Equipa”.

Zelensky provavelmente também não acredita na palavra da recente promessa europeia de tanques e aviões – e ele sabe que se trata sobretudo de uma quimera. Mas ele joga na “Equipa”. Alguns tanques extra não farão diferença no terreno, e a sua quinta mobilização está a chocar com resistências no interior do país. Os militares europeus estão à espera deste episódio, os seus arsenais a funcionar com “tanques de reserva”.

Zelensky diz repetidamente que tem de ter tanques e aviões até Agosto para consolidar as suas defesas que estão em plena hemorragia. Mas, contraditoriamente, Zelensky está advertido de que é essencial “fazer ganhos significativos no campo de batalha” agora – uma vez que é a Administração “está fortemente convencida” de que será mais difícil depois disso, obter apoio do Congresso (ou seja, Agosto é tempo passado; será tarde demais).

É evidente que os EUA estão a preparar o terreno para um “Anúncio de Vitória” da Primavera – como prefiguram os comentários delirantes de Milley – e para fazerem um giro – apenas um instante antes do início do calendário eleitoral presidencial dos EUA.

A ‘narrativa’ nos media dominantes já começou a transição para a próxima esmagadora ofensiva russa – e da heróica resistência ucraniana submergida por uma força esmagadora.

“A natureza crítica dos próximos meses já foi veiculada a Kiev em termos directos por altos funcionários de Biden – incluindo o conselheiro adjunto de segurança nacional Jon Finer, a secretária de estado adjunta Wendy Sherman e o subsecretário de defesa Colin Kahl, que visitaram a Ucrânia no mês passado” (Washington Post) – com o director da CIA Bill Burns a viajar para informar pessoalmente Zelensky apenas uma semana antes da chegada desses funcionários.

Zelenksky foi avisado. Resultados agora, ou então…!

Mas então Seymour Hersh diz finalmente em voz alta uma dura realidade não dita – uma realidade com consequências políticas extremamente complicadas (retirada da entrevista subsequente de Hersh com o Berliner Zeitung, (tradução do Google)). Não, não a sabotagem do Nord Stream (sabíamos disso), mas a do imprudente erro de avaliação e da raiva crescente em Washington – e do desprezo pelas imaturas avaliações políticas de Biden e da sua equipa próxima de neoconservadores.

Não é só que a equipa de Biden “rebentou com os gasodutos”; eles orgulham-se disso! Não é só porque Biden estava preparado para eviscerar a capacidade competitiva e as perspectivas de emprego da Europa para a próxima década (alguns irão aplaudir). A parte explosiva da narrativa foi que “Em algum momento depois da invasão russa, e de a sabotagem ter sido feita… (estas são pessoas que trabalham em posições de topo nos serviços de inteligência, e estão bem treinadas): Viraram-se contra o projecto. Acharam que era uma loucura”.

“Havia muita raiva entre os envolvidos”, observou Hersh. Inicialmente, a narrativa de Biden sobre o Nord Stream – “não se funcionará” – foi entendida pelos “profissionais” da Intel como um simples meio de pressão (ligada a uma eminente invasão russa na altura) – uma invasão que Washington sabia que estava para vir, porque os EUA estavam a preparar furiosamente os ucranianos – precisamente para desencadear a invasão russa.

No entanto, a sabotagem do Nord Stream foi adiada – de Junho até Setembro de 2022 – meses depois de a invasão ter acontecido. Então, qual foi então o objectivo de paralisar a base industrial europeia através da imposição de elevados custos de energia? Qual foi a razão de ser? E houve mais raiva contra os membros da equipa de Biden pelo que “se lhes escapou da boca sobre o Nord Stream”, gabando-se efectivamente de “claro que sim, nós ordenámos isso”.

Hersh comenta que embora a CIA responda perante o ‘poder’ em sentido lato, e não ao Congresso, “até esta comunidade está horrorizada com o facto de Biden ter decidido atacar a Europa no seu ponto fraco económico – a fim de apoiar uma guerra que ele não vencerá”. A opinião de Hersh é que, numa Casa Branca obcecada pela reeleição, a sabotagem do Nord Stream foi vista como uma “vitória”.

Hersh disse na sua entrevista ao Berliner Zeitung:

“O que eu sei é que não há maneira de esta guerra acabar da maneira que nós [os EUA] queremos que acabe… Assusta-me que o Presidente estivesse pronto para tal coisa. E as pessoas que realizaram esta missão acreditavam que o presidente estava bem ciente do que estava a fazer ao povo da Alemanha. E a longo prazo, [eles acreditam] que isto não só prejudicará a sua reputação como presidente, mas também será muito prejudicial do ponto de vista político. Será um estigma para os EUA”.

A preocupação é mais grave ainda – é que o zelo obsessivo de Biden está a transformar a Ucrânia de uma guerra por procuração numa questão existencial para os EUA (existencial no sentido da humilhação e dos danos à reputação se a guerra fosse perdida). Trata-se já de uma questão existencial para a Rússia. E duas potências nucleares num confronto existencial são más notícias.

Sejamos muito claros: esta não foi a primeira vez que Biden fez algo – considerado pelos profissionais dos serviços secretos norte-americanos – como totalmente imprudente: Robert Gates, o antigo Secretário da Defesa [de George W Bush e de Barack Obama] disse no domingo que Biden se enganou em quase todas as grandes questões estrangeiras e de segurança ao longo de quatro décadas. Em Fevereiro de 2022, apreendeu os activos cambiais da Rússia; expulsou os seus bancos da SWIFT (o sistema de compensação interbancária) e impôs-lhe um tsunami de sanções. A Reserva Federal e o BCE disseram depois que nunca foram consultados, e se o tivessem sido – nunca teriam consentido com as medidas.

Biden alegou que a sua acção iria “reduzir o rublo ao rublo”; estava gravemente enganado. Pelo contrário, a resiliência da Rússia aproximou os EUA de um precipício financeiro (à medida que a procura de dólares seca, e o mundo se desloca para leste). Da perspectiva de actores financeiros significativos em Nova Iorque, Biden e o Fed têm agora de se apressar a resgatar um país sistemicamente frágil.

Dito de forma simples, a importância da entrevista do Berliner Zeitung de Hersh (e das suas outras peças) é que as facções dentro do Estado profundo dos EUA estão furiosas com o círculo de neoconservadores (Sullivan, Blinken e Nuland). A confiança ‘acabou’. Eles vêm atrás deles; e continuarão a vir… A peça de Hersh é apenas uma primeira mostra.

De momento, o projecto dos neoconservadores na Ucrânia permanece ‘actual’, com a Equipa Biden a exigir que todos os aliados ocidentais permaneçam firmes na sua mensagem, antes do primeiro aniversário da Operação Especial da Rússia, a 24 de Fevereiro.

No entanto, parece que a janela crítica para a Ucrânia, de alguma forma, “ganhar magicamente”, está a ser reduzida de meses para algumas semanas. A “vitória”, é claro, continua por definir. No entanto, a realidade é que será a Rússia, e não a Ucrânia, a montar a ofensiva da Primavera – e possivelmente ao longo de toda a extensão da Linha de Contacto.

Está à vista de todos para a Ucrânia (embora com Kamala Harris enviado para a Conferência de Segurança de Munique) ligar para o longo prazo a ‘posição’ de um ‘compromisso duradouro com a Ucrânia’ por parte do Ocidente colectivo.

Paradoxalmente, atrás da cortina, esta “guerra civil” em curso nos poderes estabelecidos dos Estados Unidos ameaça tornar-se “escrita” também para Biden – à medida que ele se aproxima daquele momento de decisão da candidatura de 2024.

Poderá confiar-se em que Biden não seja imprudente, perguntar-se-á a comunidade de inteligência dos Estados Unidos a si própria, à medida que a Ucrânia se transforma em entropia sob uma onda russa que atravessa todas as frentes? Será que Biden voltará a ficar desesperado?

Poderemos imaginar que os EUA poderão dar-se por vencidos e conceder a vitória russa? Não – a NATO poderia desintegrar-se face a um fracasso tão espectacular. Assim, o instinto político será redobrar a aposta: está a ser considerado um destacamento da NATO para a Ucrânia ocidental como “força tampão”, para a “proteger dos avanços russos”.

Não é difícil perceber porque é que as facções dentro do Estado Profundo estão “horrorizadas”: Os produtos da indústria de defesa americana estão a ser consumidos na Ucrânia mais rapidamente do que podem ser fabricados. Está a alterar negativamente os cálculos dos EUA sobre a China, uma vez que o inventário militar dos EUA arde na Ucrânia. E a guerra da Ucrânia pode facilmente alastrar à Europa de Leste …

O resultado final é a percepção inesperada (para a elite) de que os próprios EUA podem ser o maior perdedor na guerra contra a Rússia. (Moscovo compreendeu isto desde o início).

A Equipa Biden provocou essencialmente uma reação concertada da classe dirigente contra as suas competências em matéria de tomada de decisões. O relatório de Hersh; o Relatório da Organização Rand, as entrevistas do The Economist com Zelensky e Zaluzhny, o relatório da CSIS, o relatório do FMI mostrando o crescimento económico da Rússia, e as erupções dispersas da dura realidade que aparecem nos media dominantes – tudo atesta o círculo de desacordo que está a ganhar força sobre o tratamento da guerra da Ucrânia por parte de Biden.

Mesmo a recente histeria do Balão chinês, que levou a NORAD a abater todos e quaisquer objectos não identificados no espaço aéreo dos Estados Unidos, cheira a que alguns no Pentágono estão a meter-se com a equipa Biden: ou seja, se vocês (Equipa Biden) forem suficientemente estúpidos para insistirem que “desmarquemos todas as caixas” nos radares da NORAD, não se surpreendam com o lixo que vão abater diariamente.

Isto testemunha, em primeiro lugar, o desdém pela compreensão da Casa Branca dos detalhes mais subtis; e, em segundo lugar, de como o Balão Chinês desempenhou um papel simbólico na re-energização dos falcões chineses dos EUA, que detêm a maioria em termos de apoio bipartidário do Congresso.

Pode Biden ser removido? Teoricamente ‘sim’. Sessenta por cento dos jovens membros do Partido Democrata não querem que Biden volte a candidatar-se. A dificuldade, porém, reside na profunda impopularidade de Kamala Harris como possível sucessor. A última prova do desvanecimento da posição de Harris é um artigo muito crítico no New York Times, cheio de desaprovação anónima dos democratas seniores, muitos dos quais em tempos a apoiaram. Agora, eles estão preocupados.

O seu medo, escreve Charles Lipson, é que seja quase impossível deixá-la cair:

“Para vencer, os democratas precisam do apoio entusiástico dos afro-americanos, que provavelmente serão insultados se Harris for abandonada. Esse problema poderia ser evitado se ela fosse substituída por outro afro-americano. Mas não há alternativas óbvias. Se Harris fosse substituída, seria provavelmente por um candidato branco ou hispânico …

“Uma tal mudança iria dilacerar um partido profundamente investido na política de identidade racial e étnica, onde os grupos perdedores são vistos como vítimas lesadas, os vencedores como opressores “privilegiados”. Essas divisões são mais virulentas quando se centram na ferida histórica da raça na América, e voltar-se-iam para dentro do partido”.

Porque não deveríamos esperar uma investigação por parte da hierarquia do Partido Democrata ou do Congresso na perseguição das alegações de Seymour Hersh respeitantes ao bypass deliberado do Congresso? Bem, dito de forma simples, é isto: Porque expõe o “indizível”. Sim, Biden não ‘informou’ o Congresso, embora alguns deles pareçam ter tido conhecimento da sabotagem do Nord Stream com antecedência. Tecnicamente, ele contornou o sistema.

A dificuldade é que ambos os lados da Câmara APROVAM, em grande parte, tal excepcionalismo – o excepcionalismo dos EUA prevê que os EUA podem fazer o que quiserem, quando quiserem, a quem quiserem. Há tantos exemplos deste tipo de excepcionalismo enraizado na prática: Quem ousará atirar a primeira pedra ao ‘Old Joe’? Não, o caso contra Biden – a ser prosseguido – deve ser a opinião colectiva de que Biden não está capacitado para exercer um juízo sensato sobre questões que podiam arriscar fazer derrapar os EUA em direcção a uma guerra total com a Rússia.

Se Biden for forçado a sair, isso será feito a partir de “salas cheias de fumo” de iniciados. Demasiadas pessoas beneficiaram calmamente do fraudulento projeto da Ucrânia.

Para onde vai a Europa, na sequência das alegações do Nord Stream? É difícil ver uma Europa dominada pela Alemanha a afastar-se de Washington. A actual liderança alemã está prisioneira de Washington e aceitou prontamente a sua vassalagem. A França vai – com alguns contratempos – ficar com a Alemanha. No entanto, à medida que os EUA observem como se contrai a sua esfera do dólar com a expansão dos BRICS e da Comunidade Económica da Ásia Oriental, os EUA cairão mais duramente sobre as economias cativas mais próximas. A Europa pagará provavelmente um preço devastador.

Em qualquer caso, a UE não discute as questões realmente sensíveis em público – apenas em salas de reunião onde todos os telemóveis foram retirados antecipadamente. A transparência ou a responsabilização mal figuram em tais discussões.

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O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

 

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